LINGUAGEM E COGNIÇÃO NA CONSTITUIÇÃO DE UMA COGNIÇÃO MUSICAL (LANGUAGE AND COGNITION IN THE FORMATION OF A MUSICAL COGNITION) Marcelo S. F. MELLO (Unicamp) ABSTRACT: view of their contents, the possible relationships between language and human cognition can modify the influence of a "semiological" model of the linguistic contents in other human manifestations, as the music - or its scientific, cognitive research, associated to the name of musical cognition. KEYWORDS: As tradições teóricas e filosóficas a respeito das relações entre linguagem e pensamento caracterizam-se comumente por uma cisão entre estes dois elementos, principalmente desde a cisão filosófica entre o corpo (a realidade material) e a alma (o pensamento, a racionalidade) proposta por DESCARTES. Uma noção de linguagem como objeto, mecanismo de sentido racional e lógico a serviço de uma racionalidade individual (de uma subjetividade), encontrável desde as formulações cartesianas, terá então, por sua vez, fortes características racionalistas e formalistas (de um conjunto de regras ou um código lógico e formal, irredutível e imbuído (de uma concretude material e invariável, ou mesmo física, dada objetivamente na natureza), ou naturalistas e inatistas (de uma organicidade “natural”, advinda de propriedades biológicas do sistema nervoso e animal). Ora, estas características serão condizentes não só com o método estruturalista — de estudo da linguagem como sistema de oposições entre elementos distintos, que marca a formulação do estudo da linguagem, a Lingüística, como ciência (SAUSSURE 1916) — mas também com os postulados da maior parte das atuais pesquisas científicas (empiricistas) a respeito dos fundamentos da mente humana, agrupáveis institucionalmente com o nome de Ciências Cognitivas, ou talvez de forma mais adequada, em uma linha teórica geral comum imputável como cognitivismo. A palavra "cognição" pode ser descrita num dicionário como o processo de "aquisição do conhecimento"; seu uso nos meios científicos aparece associado mais especificamente ao estudo de processos específicos da percepção e da atividade motora, animais e humanas, e principalmente sua relação com o pensamento e a razão, ou com "atividades mentais superiores". Ou seja, ao momento justamente em que a sensação física (perceptual) e o pensamento abstrato podem se "transformar" ou se "transmitir" um ao outro. Se os processos mentais superiores são acessíveis para descrição e explicação apenas através de especulação filosófica, os processos perceptuais e motores apresentam um vasto 2 campo objetivo e material para estudos científicos, empíricos, formais e precisos. A partir desta fórmula simples, a proposição atual de respostas científicas (empíricas, materialistas) a respeito da mente humana responde a origens históricas, epistemológicas e ideológicas delimitáveis (DUPUY 1996); abarca na verdade questões fundamentais do conhecimento humano; e, ao mesmo tempo, têm profundas controvérsias em sua própria conceituação. Historicamente, ela deve ao "dualismo ontológico" oriundo do logo existo") toda a filosofia moderna), e posteriormente a longínquos posicionamentos de caráter empiricista (Locke, Hume, Stuart Mill, etc. -- cf. HAMLYN 1995; FREITAS 1994); mais recentemente, ao intrincado desenvolvimento teórico e tecnológico das ciências matemáticas e mais especificamente computacionais durante o século XX, o que permite situar o movimento cognitivista, em grande parte, como fruto de uma visão formalista, fisicalista, logicista e mecanicista dos processos mentais, de uma mecanicidade da razão humana, a partir de pesquisas como as de TURING, MCCULLOCH, VON NEWMAN etc. Trata-se então de investigar portanto uma problema filosófico da relação entre a alma e o corpo" Haverá, porém, posições discordantes em relação a um papel meramente instrumental, formal ou mecanicista dos fenômenos da linguagem, opondo, a uma estrutura (um objeto) lógica e invariável, a noção de uma atividade do dia-a-dia, um processo (entre sujeitos da linguagem) construído dentro de contextos humanos, sociais e históricos. Se uma linguagem postulada como mecanicista e instrumental é concordante com as abordagens materialistas e cientificistas da Ciências Cognitivas, a noção da, linguagem como um processos intersubjetivo e contextual também pode representar um paradigma de oposição aos preceitos teóricos das pesquisas cognitivistas. Nessa situação, a linguagem não é mais necessariamente vista apenas como manifestação de uma estrutura formal (da língua, do pensamento ou de processos cognitivos mais primários), mas passa a ser valorada também como atividade, estruturada e estruturante destes processos (a língua, o pensamento, processos cognitivos etc.). Para além de suas categorias estruturais, para além de um sistema determinístico, a linguagem enquanto "atividade constitutiva" dilui e amplia as fronteiras do lingüístico, definindo-o como um processo, sempre intersubjetivo, entre indivíduos (ou sujeitos lingüísticos) específicos, mais do que baseado em princípios invariáveis, sejam estruturais (ou sintáticos), sejam de referência a "objetos" denotativos da realidade (aos quais se deva imputar um “valor-de-verdade”). Da mesma forma, se pela separação entre sistema lingüístico (de funcionamento da significação, abordável pela metodologia estruturalista) e suas manifestações, o método estruturalista determina uma dicotomia essencial entre língua (estrutura formal) e fala (manifestação humana, intersubjetiva), esta dicotomia perde sua força conceitual na medida em que são valorizados elementos ligados às formas e processos lingüísticos dialógicos, enunciativos ou ilocucionais, de questionamento das maneiras pelas quais é possível se formar e se manter estes sujeitos lingüísticos enquanto tais, enquanto usuários de uma língua, enquanto falantes válidos ou autorizados (o que abarca também suas condições de 3 manifestação ou produção). Nesse movimento, onde podem ser acolhidos diversos pontos de vista distintos dentro de disciplinas pertinentes aos estudos da linguagem (pragmática, teorias enunciativas, discursivas etc.), cria-se uma posição essencialmente lingüística em relação aos processos mentais. A partir deste ponto, cada uma das principais características que as ciências cognitivas aplicam a seu objeto de estudo pode ser reconstruída. Porém, para que possa ser alçada à condição de uma nova epistemologia, uma abordagem intersubjetiva, interlocutiva, dos conteúdos e processos mentais, deve ter a capacidade de abarcar questões interdisciplinares pertinentes, especialmente no tocante à constituição de processos cognitivos. Tal é o caso, por exemplo, das estreitas relações imputadas entre a linguagem e a música, entre os processos lingüísticos e as manifestações musicais, que podem ser apresentadas entre os mais comuns axiomas dentro do conhecimento humano. Por sua vez, as relações entre música e a cognição humana têm suscitado uma miríade de trabalhos recentes nos mais diversos assuntos correlatos, que podem ser reunidos sob o termo genérico de cognição musical, ou outros de igual valor. Estudos sobre cognição musical constituem um ramo científico atual tão florescente quanto a diversidade encontrada nas próprias ciências cognitivas, com vários estudos particulares e "tratados" literários abrangentes, periódicos científicos especializados, centros de pesquisa espalhados pelo mundo. De modo geral, para cada uma das grandes áreas de interesse (ou das prerrogativas teóricas) de onde são enunciadas características cognitivas de nosso comportamento, pode se encontrar aplicações já formalizadas no terreno da música. As bases epistemológicas e inter-relacionáveis dentro das pesquisas em cognição musical, por sua vez, foram o tema de minha recente dissertação de mestrado (MELLO 2003). A Lingüística, como modelo interdisciplinar, tem de fato papel preponderante em postulações teóricas e metodológicas atuais em várias áreas afins da cognição musical. É através de uma perspectiva lingüística (estruturalista), portanto, que pode se vislumbrar já uma primeira forma de introduzir a linguagem em suas relações com a música: como o sistema semiológico por natureza, a linguagem verbal se impõe como modelo estrutural (estruturalista?) para outras "linguagens", entre elas a musical, permitindo-lhes uma forma anterior de conceituação e de funcionamento (como em BENVENISTE 1966). Nesse caso, a música assemelhar-se-ia ou "aspiraria" a um sistema semiológico ou mesmo estruturalista, ou seja, um sistema auto-referente onde as regras de inter-relação entre seus elementos se mostrem nítidas ou ao menos imbuídas de sentido, de validade pela simples oposição que estes elementos fazem entre si, como nas prerrogativas estruturalistas. Uma proposta como esta pode ser considerada como disseminada em todas as possíveis áreas de atuação de uma cognição musical: epistemologia (SEEGER 1977), análise musical (LERDAHL, JACKENDOFF 1981), neuromusicologia em suas diversas formulações (DALLA BELLA, PERETZ 1999; BESSON KUTAS 1997 etc.), inteligência artificial aplicada à música (SMOLIAR 1980) teorias de desenvolvimento humano e infantil (VANEECHOUTTE, SKOYLES 1998) etc. Cria-se aqui, portanto, uma situação de interdisciplinaridade, no sentido clássico, entre modelos lingüísticos e sua aplicação em conteúdos cognitivos em música. 4 Ocorre que uma tal “interdisciplinaridade” restrita entre objetos do conhecimento mantém uma condição de instrumentalidade funcional, de “comparação de fins adequadamente atingidos”, tanto no campo da linguagem como principalmente no campo da música, identificada dentro dos paradigmas formais estipulados em nossos meios sociais. Isto é, a cognição musical será prescrita a partir das características presentes na música “normal” que conhecemos, dos padrões musicais estabelecidos socialmente, de uma idéia (idealização) pré-formada dos conteúdos musicais. Mais que isto, esta “idéia” do que seja o musical é apresentada como possuidora de um caráter universal, racional e causal, uma vez que determinada por princípios cognitivos, ou em última instância científicos (empíricos, racionalistas). Se é estipulada uma necessidade "causal" entre a percepção musical e seus objetos, esta causalidade não parece fornecer dados novos nem para uma livre interpolação entre música e musicalidade (entre elementos musicais e seus efeitos psicológicos), nem para uma relação contingente com a linguagem e a Lingüística, para além de uma mera instrumentalidade. E as perguntas de fundo epistemológico permanecem sem resposta neste caso: o musical é definível a partir das propriedades das manifestações reais da música? A música, é definível a partir de propriedades declaráveis do musical? Ou, dentro da relação entre música e linguagem: "A música é uma linguagem? [...] Ou se estrutura como uma linguagem? De que material ela se constitui? A 'linguagem do som' [musical] e a 'linguagem falada' têm uma mesma natureza? [... Haveria então] uma espécie de 'poder' ou 'ingerência' da música na linguagem falada? Ou será que a expressão 'linguagem musical' seria mais uma espécie de metáfora? Se ela existe, qual o seu lugar na semiologia?" Assim, deverá apresentar conseqüências profundas, para a cognição musical, a afirmação da possibilidade de uma nova epistemologia, uma nova teoria do conhecimento, intersubjetiva e de interconstituição entre a linguagem (as práticas lingüísticas) e a cognição, ou entre estas e o ambiente (contextual) que os cercam. Os objetos (ou as manifestações musicais) passam a não ser mais definíveis simplesmente a partir de um mecanismo causal, cognitivo, lógico (ou simplesmente sonoro, auditivo). Eles corresponderão a um processo de identificação, valoração e interpretação subjetiva (por sujeitos) de objetos passíveis de serem considerados como musicais, portadores de uma mensagem musical. É um paradigma epistemologicamente bastante diverso da causalidade explicativa buscada nas perspectivas cognitivistas: a ênfase deixa de ser dada no objeto musical, e volta-se ao sujeito; um mecanismo objetivo de percepção passa a ser tomado como um processo de interpretação, e a música deixa de ser uma questão essencialmente de estrutura, e passa a se relacionar meramente com uma posição definida. Ou seja, as instâncias musicais podem passar a ser consideradas como normas de funcionamento de um determinado discurso (de uma determinada formação ideológica), e as manifestações musicais, como adequações subjetivas, ou subjetivadas, de construção de "lugares" possíveis de sua percepção - os 5 sujeitos musicais. A cognição musical, finalmente, pode ser apresentada para além de uma descrição de delimitações empíricas dos objetos (dos fenômenos) musicais, como testemunhas de particularidades processuais de eventos de formação de uma subjetividade musical. Ou seja, não uma cognição da música, mas a cognição de um discurso musical, de um discurso da música. O estudo de um discurso em música pode se ampliar de um discurso das "estruturas musicais", para tomar como pertinentes todas as formas de inter-relação entre um fazer musical (um falar de música, uma experiência musical etc.) e uma constituição imaginária do signo musical, ou do objeto musical. No peso valorativo (constitutivo) dos termos e das proposições envolvidas nesta relação, em todas as instâncias nas quais é possível determinar os indivíduos responsáveis pelo ato musical (quem ou o quê faz música; para quem; onde; quando; quais são os pré-requisitos para que se tenha uma música; questões de valor e julgamento estético etc.). No próprio caráter técnico-retórico, presente nas formulações de uma “metáfora” musical existente entre suas manifestações e sua delimitação teóricofuncional. Na tendência (diria-se tão "universal" quanto as próprias manifestações musicais) de imposição social, ideológica, dos sistemas musicais, como sistemas naturais, dotados de propriedades "inefáveis", além (ou aquém) de qualquer formulação ou indicação material (concreta), "implícitos", "metafóricos", identificados com uma Música "ela-mesma". E também na possibilidade de estudos delimitados, de "campos discursivos" (MAINGUENEAU 1984) específicos, dentro de um período histórico (ex. o sistema musical chinês; o canto gregoriano; o sistema tonal em vária acepções), de uma sociedade ou de uma relação social (política) (ex. a teoria musical como um processo de constituição de uma classe social, os músicos, ou mesmo como ritual iniciatório, mitológico; os processos de culturalização, produção e consumo dos objetos musicais). É claro, a incipiência de abordagens com estas é tão clara quanto a da própria construção de uma tal “nova epistemologia”, um modelo intersubjetivo para as relações de fulcro entre linguagem e cognição. O caso aqui é apenas o de apontar para a grande questão da subjetividade musical, das várias formas de limite entre a música e a não-música, como ponto central no desenvolvimento futuro dentro da cognição musical. E também o de encarar estes dados como evidências específicas e locais, delimitadas, no processo de contínua construção do conhecimento humano (e musical), levando a novas fronteiras possíveis, a novas formas possíveis, a novas cognições possíveis; seria possível, afinal, dar a "'última palavra" científica sobre música, determinar de uma vez por todas as possíveis estruturas, as possíveis seqüências, as possíveis atividades musicais? E quanto às lingüísticas, ou às cognitivas? RESUMO: Ampliando o alcance e o sentido de uma visão intersubjetiva, social e discursiva de seus conteúdos, as possíveis relações de inter-constitutividade entre a linguagem e a cognição humanas podem modificar o papel de “modelo semiológico” dos conteúdos lingüísticos frente a outras manifestações humanas, como a música — ou sua formulação científica, cognitiva, associada ao nome de cognição musical. 6 PALAVRAS-CHAVE: música ; cognição ; linguagem ; cérebro ; mente REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS DASCAL M. (1983). Benjamins. MORATO E.M. (1996). reguladora da linguagem. SAUSSURE F. (1916). DUPUY J-P. (1996). HAMLYN D.W. (1995). Epistemology, history of. IN Philosophy; Oxford University Press em 09/12/02). FREITAS M.T.A. (1994). Paulo: Ática. AUROUX S. (1994). BENVENISTE E. (1966). A semiologia da língua . IN Campinas: Pontes; pp 43-67; (1974). BARTHES R. (1990). Fronteira. SEEGER C. (1977). California Press. LERDAHL F., JACKENDOFF R. (1981). Generative Music theory and its relation to psychology . Journal of Music Theory 25:45-90. DALLA BELLA S., PERETZ I. (1999). Music Agnosias: Selective Impairments of Music Recognition After Brain Damage . Journal of New Music Research 28(3):209-216. BESSON M., KUTAS M. (1997). Manifestations életriques de l´activité de langage dans le cerveau . IN FUCHS C., ROBERT S.(orgs.); cognitives; SMOLIAR S. (1980). Music programs: an approach to music through computational linguistics . Journal of Music Theory 20(1). VANEECHOUTTE M., SKOYLES J.R. (1998). The memetic origin of language: modern human as musical primates. Journal of Memetics - Evolutionary Models of Information Transmission 02; online http://jom-emit.cfpm.org/1998/vol2/vaneechoutte_m&skoyles_jr.html (citado em 13/01/2003).